segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O grande canto

Ouço os sons da chibata
a pousar sobre o tempo

Tempo de vislumbre
e cantos

Tempo de esquilos
solitários, lentos
que vejo estendidos
às paredes, vítreos

Tempo de não tempo
de róseos dias, chuvas

Tempo de cantar
a águia e seu solilóquio
aéreo

Tempo de louvar
o dom divino do poema
e seus ombros macios
suas curvas mestras

Tempo de esconjurar
a memória dos gramados
umedecidos pela noite
e sua lua a gritar virtudes

Tempo de transparecer
o mundo e seu perjúrio pequeno
que se insinua mastro

e prender-se às rodas
metálicas que sussurram
suas canções tortas

Tempo de embarcar
qualquer trem
por quaisquer trilhos

pousar a cabeça sobre
as folhas que morreram
clamando os metais

e descobrir vidas
a alimentar a terra
Grande amálgama
de água acumulada

Encontrar uma maçã
caída sobre os alabastros pequenos
oníricos

e morder sua carne sombria
imensa

Arquitetar palavras que
se sucedem e oferecê-las
à luz, como tempestades
serenas

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A rosa

A rosa lúgubre
sua face neutra
seus sons corruptos
seu odor sem odor

A rosacorpo de mulher
distinta
e as rosas sem pudor
das meretrizes

A rosa do samba
morto
da destruição
da noite

do absurdo
negro de
agosto

a rosa sem
rosa

A rosasolidão
da política

As rosas insalubres
dos caixões

As rosas perdidas
pelos botecos ermos

Mundo do novo século
Há um cheiro
de morte da rosa
em teu ar
sem o ar

Há um cheiro
de um mundo
sem mundo

Há um cheiro de Deus
sem perdão

Há um cheiro
de dor sem oblívio

um cheiro de rosa
rubra nua
deitada estendida
morta

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Primórdio de lua

Distinta cai a lua para dentro do mundo

Sua chama ainda é branda e coteja a chama do dia



Fim de tarde quase morto, princípio de noite quase vivo,

e o ar e sua confusão metálica



forças de aves pairam sobre o corpo das ruas,

confusos metais brilham, luzes se anunciam tímidas e mortíferas,

e o barulho parece cego, depravado...

mulheres banham-se em tristezas... e o rebanho de automóveis

corre longe...



Eu estou perto... perto mas escondido como um corvo

sentindo tiritar o que só eu mesmo sinto -

a agressão do mundo, a palidez da alegria instituída,

a força corrosiva de tudo que progride...



Minhas mãos...apenas minhas mãos...como pele de fauna santa

trabalham martirizando-me, mostrando-me como tudo

tem de ser... sereno e amargo... doloroso e grande

como a lua que se mostra fibrosa e distante



Vento do crepúsculo...teu sangue é como uma vida implorando vida

teu rosto está tingido de paródias...tuas histórias são

vastas e delirantes... teu talo é pequeno e enraizado.



Nada o move do momento que apontas... o único momento

em que apareces encharcado de verbos...

o momento do anoitecer, quando a lua é

um primórdio tímido estufando melodias...

a melancolia... o desarranjo.


domingo, 22 de agosto de 2010

Clara manhã, obrigado, o essencial é viver!

Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos.

Carlos Drummond de Andrade



Escolho esta célebre afirmação do grande poeta itabirano, o homem "triste, orgulhoso: de ferro", para inaugurar este blog com os versos que venho escrevendo há quase dez anos, sem coragem de torná-los públicos. Muitas coisas poderiam ser ditas sobre o estímulo para a literatura. Creio tratar-se mais de um impulso. Mas o mundo é mesmo governado por impulsos: o que explica essas hordas de homens e mulheres dedicando-se à política, à ciência, aos filhos, às letras, aos esportes? Impulsos e paixões quase inexplicáveis acrescidos do tempo que nos é ofertado viver, e alguma recompensa terrena e/ou extraterrena. Espero que os versos tornados públicos por aqui possam acrescentar algo, ainda que modestamente, a quem se dispuser a lê-los. Afinal vivemos tempos tristemente pragmáticos, carentes de poiesis - nos dizeres de Drummond, um tempo de partido, tempo de homens partidos.